12.10.16

Cidadania uber alles

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Parece-me uma distracção perigosa ver a questão "Uber vs. Táxi", enquadrada, precisamente, como "Uber vs. Táxi".


Isto ora é ver o assunto na perspectiva de consumidor -- o que não parece oferecer grande debate; sim, a Uber é muito mais fixe e limpinha e presta um serviço excelente (1), -- ou de empreendedor -- as desigualdades de obrigações e oportunidades que agentes diferentes num mesmo ramo de operação têm em termos de impostos, certificações, etc. (2)

Tudo isto é muito interessante mas, é uma distracção, porque me parece haver um ângulo mais importante, o de cidadão. (3)

É claro, a ideia de cidadania implica a ideia de sociedade, coisa que já não existe. Só há indivíduos. Indivíduos-consumidores e Indivíduos-empreendedores. No entanto, deixem-me ser antiquado por um momento e, preocupar-me, enquanto cidadão, com a caminhada fulgurante de um modelo empresarial em que o capital apenas se coloca como mediador, facilitador, plataforma, despejando para os trabalhadores os custos e riscos da operação. Mais ou menos como uma pensão escavacada da baixa da cidade está para uma puta: só aluga o quartito.(4)

Mas, reparo agora, também a questão da "modernidade" é uma distracção. O que é que é verdadeiramente e estonteantemente moderno na Uber? O conceito inovador de transportar pessoas de um sítio para o outro numa cidade? A exploração dos trabalhadores numa relação laboral sem segurança nem responsabilidades patronais? Tanto uma coisa como outra são antigas, afinal, os direitos sociais que nos dizem ultrapassados, que só gente antiquada defende, representaram o progresso relativamente à liberdade do capital que agora vemos ressurgir. É tristemente, mas reveladoramente irónico verificar que, um dos argumentos dos defensores da escravatura, aquando da guerra civil norte-americana, era o de que, enquanto que o dono de escravos, por ter a sua propriedade, preocupar-se-ia em tomar bem conta deles, como de qualquer animal ou objecto de que também tivesse posse, o capitalista, porque não compra o trabalhador, apenas o aluga -- e num mercado em que a oferta (de trabalhadores para serem alugados) é sempre maior que a procura (postos de trabalho), -- está livre para explorar e abusar o trabalhador de maneira mais perversa.

Que essas perversidades do capital tenham sido minoradas, foi o resultado de lutas de muitas décadas. Que essas conquistas agora pareçam coisas antiquadas e ultrapassadas, é o resultado da falta de memória.

A verdadeira, e preocupante, inovação da Uber, e da "uberização da economia", é que, agora, o capital pode alugar o "pack completo". Trabalhadores e meios de produção, juntos num combo especial, em promoção, totalmente à sua mercê.


(1) Embora se deva perceber como e porquê. Por um lado, os preços competitivos convivem com prejuízos astronómicos, num plano de médio-longo prazo dos investidores, até que já não haja concorrência. Por outro, a qualidade do serviço convive com a precariedade dos trabalhadores aliada ao modelo semi-distópico de avaliação por estrelinhas -- só este aspecto, devidamente explorado na totalidade da ramificação de implicações, merecia um(s) outro(s) texto(s).

(2) O porquê de tanta gente discutir acaloradamente esta perspectiva será resquícios desta merda?

(3) E uma espécie de "ângulo morto", isto é, aquilo de que não se fala por se estar a falar disto, mas que é um assunto tangente, as redes de transportes públicos.

(4) Isto, claro, antes de a pensão ter começado a arrendar os quartos no AirBnB.