1.9.24

Alexander e aquilo que Sr Bergman Quiser

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Resolvi reabrir isto porque me chateia constatar que todas as coisas têm o seu fim, mas, sobretudo, chateia-me o fim prematuro das coisas (na realidade tudo me chateia neste momento).

Ontem fui ao cinema Trindade ver uma versão restaurada da longa-metragem Fanny e Alexander —Fanny och Alexander — (1982) na sua versão curta de mais de 3 horas (188m). 

Ora no fim do filme em conversa com mãe e irmão, a coisa descambou um pouco porque, não obstante não ter odiado o filme (bem longe disso, e a maioria deste, é, de facto, encantador), resolvi desancar no santo realizador.

Não é a primeira vez que vejo um filme do senhor, e lhe encontro um desprezo ou desleixo considerável pela estrutura narrativa das suas obras — e atenção que escrevi toda uma dissertação a tentar retirar da obscuridade outros aspetos relativos a obras de arte que acabavam subsumidos (1) à "narrativa" — o “conteúdo”, informação, ideias, simbolismos, metáforas, bla, bla, bla — como o são a "forma", designada de “sensação”, e o meio-termo, a síntese em suspenso entre forma e conteúdo, designada de "imagem".

Antes de prosseguir relembro (sobretudo a mim próprio) que há que dar aqui um desconto a toda a crítica que se segue, uma vez que este "filme" terá também sido desenhado para se tornar uma mini série com mais de cinco horas (312 minutos) e partida em 4 episódios para ser televisionada um ano depois (1993) na Suécia. 

Pois então vejamos, este filme é um logro logo a começar pelo título. Fanny, a irmã de Alexander está bem longe de ser uma protagonista, sendo que o título mais adequado seria "Alexander e a família" ou "A Família de Alexander", porque é exatamente disso que o filme trata. Trata sobretudo de Alexander, e mesmo quando diverge para todos os demais membros da família, fá-lo tendo em vista uma sensação de omnipresença do miúdo, a quem, parecem ser reconhecidos poderes divinos partilhados com o narrador no último quinto do filme — veja-se a cena com Ismael e o momento vudu com a emulação da tia Elsa.

Fanny, fora o título, tem menos protagonismo que a avó, Helena Ekdahl, a verdadeira heroína; que o tio Gustav — o hedonista que personifica em cena o savoir-vivre dos Ekdahl; que o pai Oscar, o seu monólogo no início do filme e as suas assombrações pelo meio; que a mãe Emilie, a trágica heroína do último quarto do filme; que o tio Carl; que o amigo Isak Jacobi; que a criada coxa Maj; ou que o austero bispo Edvard. Em suma, é constrangedor, ainda para mais, tendo em conta a última conversa entre Emilie e Helena, onde depois de a primeira convidar a segunda para representar numa peça de teatro da autoria de August Strindberg ("um misógino" - exclama Helena), declara serem elas “quem agora manda”. Mandam elas, é um facto, são mulheres fortes as de Bergman, é verdade, mas não a pequena Fanny a quem lhe cabe a árdua tarefa de olhar com um bovino espanto para as coisas que acontecem, num primeiro plano e contínua passividade sobre grande parte dos desenvolvimentos narrativos. 

O meu problema com Fanny e Alexander é mesmo um problema com a narrativa, que, não só é tratada por Bergman como se de uma peça de teatro se tratasse — no tom explicativo, exaustivo, ou excessivo dos diálogos para encaminhar o que não pode ser feito sequencialmente e na representação demorada e redundante de várias cenas. — como também revela uma falta de cuidado na continuidade (raccord) entre cenas e uma abusiva falta de verosimilhança que a desobrigaria dos vários mini diálogos explicativos posteriores.

O filme começa bem, é muito bem filmado, tem planos lindíssimos; as flores coloridas no meio da neve, nos enquadramentos feitos como pelo próprio olhar de Alexander; nos perfis em grande plano deste e da porta pintada, ou quando a face de Aron lhe fala junto ao ouvido; na série de cross-cuttings ou literais matchcuts que jogam com essa fusão entre o olhar de Alexander e do narrador ou do próprio Bergman (quando portas são abertas por um personagem num determinado espaço e tempo e desembocam noutra cena diferente).

Só que depois, (1º) coloca a morte do pai Oscar em cena, por via do médico que mede o pulso quando o podia deixar implícito após a cena com os filhos; (2º) coloca de forma redundante os polícias ou detetives a ir ao encalço de Emilie após o incêndio da casa do bispo Edvard, para lhe explicar que esta não é suspeita quando momentos antes, num momento de (3º) "irrealismo mágico" temos o amigo Isak Jacobi a resgatar os miúdos descalços num baú que depois também estão no quarto sob o olhar de balcão da mãe e a fúria do bispo inexplicavelmente impotente para o deter ; (4º) não dá contexto nenhum para a entrada do bispo na vida de Emilie e dos filhos introduzindo abruptamente este novo facto numa cena sofrível em que Edvard inquire Alexander sobre a distinção entre a verdade e mentira sob o olhar preocupado da mãe; (5º) não dá contexto às relações sentimentais de parentesco pai-mãe-filhos relativamente a Oscar, Emilie, Fanny e Alexander; (6º) entre as várias cenas que nos mostram quem são os irmãos de Oscar — Gustav e Carl — enquanto a Oscar, (7º) que parece mais velho que a mãe Helena, lhe são reservadas as cenas da autoridade gasta que morre por contraponto da vitalidade da mãe, e que não nos permitem (8º) qualquer elo emocional com esta figura que justifique a sua deambulação pelo filme, e a Gustav lhe estão reservadas uma série de intervenções que o tornam indispensável para o desenlace e ensinamento anti moralista do fim do filme, já Carl fica circunscrito a duas boas e suficientes cenas — a de bêbado e peidorreiro — e a uma (9º) última, pífia e inconsequente cena , sem qualquer espécie de seguimento no filme, em que declara à esposa alemã Lydia, entre outras coisas desagradáveis, que é um falhado e um cobarde, destoando grandemente não só do savoir-vivre da mãe e do irmão, mas também do resto do filme. Em suma, o filme está cheio de cenas, momentos e personagem que não acrescentam nada, que são incongruentes entre si, e que, por isso mesmo, não são passíveis de ser justificadas. Só estorvam e prejudicam o produto final como um todo.

Há ainda uma dificuldade grande em manter o ritmo do filme que se demora muito em grandes diálogos e explicações, para depois saltar de forma abrupta por entre espaços e tempos, para em seguida voltar a colocar as personagens a narrar essas elipses com mais diálogos facilmente dispensáveis e que rompem com o tom mais contemplativo e podiam ser resolvidas com melhores montagens cinematográficas. Parece que filme surge de uma encomenda para se tornar num produto familiar de domingo à tarde, é escrito, preparado e filmado para tal, mas no momento da montagem, fruto de uma qualquer camoeca ou amuo do realizador, se tenta partir o tom certinho e linear, mas já sem grande sucesso para o efeito. 

Vistas bem as coisas, talvez esta minha irritação toda e texto extenso e mal encaminhado se tivessem evitado se em vez de ter sido exposto a esta pseudo-montagem de 3 horas de algo feito para 5, tivesse antes visto logo os 4 episódios e, aí sim, talvez o encadeamento narrativo não tropeçasse tanto e todo o restante trabalho de realização não ficasse tão manchado aos meus olhos. Talvez ainda o faça, talvez não seja preciso. Tirei o que queria do filme, e, ao contrário de alguns catastrofismos necessariamente presentes em cada época (2), acho que se continua a fazer muitas coisas boas e não é preciso persistir em vacas sagradas que se estão a cagar.

(1) Das poucas vezes que esta palavra deve ter sido tão bem usada por mim.

(2) Basta lembrar a conversa entre Isak Jacobi e a avô Helena em que este se queixa que nem lhe custa assim tanto morrer porque, de qualquer modo “tudo piorou” — “piores pessoas, piores máquinas, piores guerras, pior clima” — e o tempo da narrativa data de 1906!